99- O PERCEBIDO NÃO PODE SER O QUE PERCEBE

Pergunta: Tenho estado me movendo de um lugar para outro, investigando as várias Iogas disponíveis para a prática, e não pude decidir qual delas seria a mais adequada para mim. Agradeceria por algum conselho competente. Neste momento, como resultado de toda esta busca, estou cansado da ideia de encontrar a verdade. Parece-me desnecessária e perturbadora. A vida é agradável como ela é, e não vejo nenhum propósito em melhorá-la. 

Maharaj: Você é bem-vindo a permanecer em seu contentamento, mas você pode? A juventude, o vigor, o dinheiro - tudo desaparecerá antes do que você espera. A aflição, evitada até agora, perseguirá você. Se você quiser estar além do sofrimento deverá encontrá-lo no meio do caminho e abraçá-lo. Abandone seus hábitos e dependências, viva uma vida simples e sóbria, não fira nenhum ser vivo; esta é a base da Ioga. Para encontrar a realidade, você deve ser real na menor ação cotidiana; não pode haver engano na busca da verdade. Você disse que acha sua vida agradável; talvez ela seja no presente momento. Mas quem a desfruta? 

P. Confesso que não conheço nem o desfrutador nem o desfrutado. Só conheço o deleite. 

M: Muito bem. Mas o deleite é um estado da mente - ele vem e vai. Sua própria impermanência o torna perceptível. Você não pode ser consciente daquilo que não muda. Toda consciência é consciência de mudança. Mas a própria percepção da mudança não necessita de um fundo imutável? 

P: Não, de forma alguma. A memória do último estado, comparada com a realidade do estado presente, dá a experiência da mudança. 

M: Entre o recordado e o real, há uma diferença básica que pode ser observada, momento a momento. Em nenhum ponto do tempo o real é o recordado. Entre os dois há uma diferença em espécie, não meramente em intensidade. O real é inequivocamente atual. Por nenhum esforço ou vontade, ou imaginação, você pode intercambiar os dois. Agora, o que é isto que dá esta qualidade única ao real? 

P: O real é real, enquanto há muita incerteza sobre o recordado. 

M: Assim é, mas por quê? Um momento atrás o recordado foi real e, em um momento, o real será o recordado. O que faz o real único? Obviamente, é seu sentido de estar presente. Na memória e na antecipação, há um claro sentimento de que é um estado mental sob observação; no real, o sentimento é, primariamente, o de estar presente e consciente. 

P: Sim, posso ver. É a Consciência que estabelece a diferença entre o real e o recordado. Pensa-se no passado ou no futuro, mas se está presente no agora. 

M: Para onde quer que vá, o sentido do aqui e agora continua com você por todo o tempo. Isto significa que você é independente do espaço e do tempo, que o espaço e o tempo estão em você, não você neles. É sua autoidentificação com o corpo que, certamente, é limitada no espaço e no tempo, que lhe dá o sentimento de finitude. Na realidade você é infinito e eterno. 

P: Como eu conheço este meu ser infinito e eterno? 

M: O ser que você quer conhecer é algum segundo ser? Você é feito de diversos seres? Seguramente, há apenas um ser e você é este ser. 0 único ser que há é o ser que você é. Elimine e abandone as ideias falsas sobre si mesmo e aí está o ser. em toda sua glória. É apenas a sua mente que impede o autoconhecimento.

P: Como posso libertar-me da mente? E a vida sem mente é possível de alguma forma no nível humano? 

M: Não existe a mente. Há ideias, e algumas delas estão erradas. Abandone-as porque são falsas e obstruem sua visão de si mesmo. 

P: Quais ideias são erradas e quais são verdadeiras? M: As afirmações geralmente são erradas, e as negações certas. 

P: Não se pode viver negando tudo! 

M: Apenas negando, pode-se viver. A afirmação é servidão. Questionar e negar são necessários; isto é a essência da revolta e, sem revolta, não pode haver liberdade. Não existe um segundo Ser ou um Ser superior para ser buscado. Você é o Ser supremo, apenas abra mão das ideias falsas que você tem sobre si mesmo. A fé e a razão lhe dizem que você não é o corpo, nem seus desejos e temores, nem tampouco a mente com suas ideias fantásticas, nem o papel que a sociedade o obriga a interpretar, a pessoa que se supõe que você seja. Abandone o falso, e o verdadeiro virá por si mesmo. Você diz que quer conhecer seu ser. Você é seu ser - não pode ser outra coisa senão o que é. Conhecer está separado do ser? O que quer que seja conhecido pela mente é da mente, não você; sobre si mesmo, você só pode dizer: ‘Eu sou, sou consciente, gosto disto'. 

P: Percebo que estar vivo é um estado doloroso. 

M: Você não pode estar vivo, pois é a própria vida. É a pessoa que você imagina ser que sofre, não você. Dissolva-a na Consciência. Ela é meramente um punhado de lembranças e hábitos. Da Consciência do irreal para a Consciência de sua natureza real há um abismo que será facilmente cruzado, uma vez que tenha dominado a arte da Consciência pura. 

P: Tudo o que sei é que não me conheço. 

M: Como sabe que não conhece seu ser? Sua percepção direta lhe diz que conhece a si mesmo em primeiro lugar, pois nada existe para você sem que esteja ali para experienciar sua existência. Você imagina que não conhece seu ser porque não pode descrevê-lo. Você sempre pode dizer ‘sei que sou’, e repelirá como falsa a afirmação ‘Eu não sou’. Mas o que quer que possa ser descrito não pode ser seu ser, e o que você é não pode ser descrito. Você só pode conhecer seu ser sendo você mesmo, sem qualquer tentativa de autodefinição e autodescrição. Uma vez que tenha entendido que você não é nada perceptível ou concebível, que tudo o que aparece no campo da consciência não pode ser seu ser, então você se dedicará à erradicação de toda autoidentificação, como o único caminho que pode levá-lo à mais profunda realização de seu ser. Você literalmente progride pela rejeição - como um verdadeiro foguete. Saber que você não está nem no corpo nem na mente, embora consciente de ambos, já é autoconhecimento. 

P: Se não sou o corpo nem a mente, como estou consciente deles? Como posso perceber algo estranho a mim mesmo? 

M: "Nada sou eu" é o primeiro passo; "eu sou tudo" é o seguinte. Ambos dependem da ideia 'há um mundo'. Quando isto também é abandonado. você permanece o que você é - o Ser não dual. Você já o é aqui e agora, mas sua visão está obstruída pelas falsas ideias sobre você. 

P: Bem, admito que sou, fui e serei; ao menos, do nascimento à morte. Não tenho nenhuma dúvida a respeito de meu ser, aqui e agora. Mas acho que não é o bastante. Falta alegria à minha vida, nascida da harmonia entre o interno e o externo. Se só eu existo e o mundo é meramente uma projeção, então por que há desarmonia?

M: Você cria desarmonia e então se queixa! Quando você deseja e teme, e se identifica com seus sentimentos, você cria aflição e cativeiro. Quando você cria com amor e sabedoria, e permanece desapegado de suas criações, o resultado é harmonia e paz. Mas, qualquer que seja a condição de sua mente, em que modo ela se reflete em você? É apenas sua autoidentificação com a mente que o faz feliz ou infeliz. Rebele-se contra sua escravidão à sua mente, veja seus laços como autocriados e quebre a cadeia do apego e reação. Lembre-se de sua meta de liberdade, até que fique claro para você que você já é livre, que a liberdade não é algo no distante futuro a ser merecida com dolorosos esforços, mas perene- mente sua própria, para ser usada! A liberação não é uma aquisição, mas uma questão de coragem, a coragem em acreditar que você já é livre, e de agir de acordo com ela. 

P: Se fizer o que quero, terei que sofrer. 

M: Todavia, você é livre. As consequências de sua ação dependerão da sociedade em que você vive e de suas convenções. 

P: Posso agir imprudentemente. 

 M: Junto com a coragem, emergirão a sabedoria e a compaixão, e a habilidade na ação. Você saberá o que fazer, e tudo o que fizer será bom para todos. 

P: Percebo que os vários aspectos de mim mesmo estão em guerra entre si e não há paz em mim. Onde estão a liberdade e a coragem, a sabedoria e a compaixão? Minhas ações apenas aumentam o abismo no qual vivo. 

M: Isto tudo é assim porque você acredita ser alguém, ou algo. Pare, olhe. investigue, faça as perguntas adequadas, chegue às adequadas conclusões e tenha a coragem de agir de acordo com elas, e veja o que acontece. Os primeiros passos podem fazer cair o teto sobre sua cabeça, mas logo a perturbação clareará e haverá paz e alegria. Você conhece tantas coisas sobre si mesmo, mas não conhece o conhecedor. Descubra quem você é. o conhecedor do conhecido. Olhe diligentemente dentro de si mesmo, lembre-se de recordar que o percebido não pode ser o que percebe. O que quer que você veja, ouça ou pense, lembre-se - você não é o que acontece, você é aquele a quem as coisas acontecem. Mergulhe profundamente dentro do sentimento do ‘eu sou’ e descobrirá que o centro percebedor é universal, tão universal quanto a luz que ilumina o mundo. Tudo o que acontece no universo acontece para você, a testemunha silenciosa. Por outro lado, tudo quanto é feito, é feito por você, a energia universal e inesgotável. 

P: É, sem dúvida, muito gratificante ouvir que se é a testemunha silenciosa e também a energia universal. Mas como alguém pode passar de uma declaração verbal ao conhecimento direto? Ouvir não é conhecer. 

M: Antes que possa conhecer diretamente, não verbalmente, você deve conhecer o conhecedor. Até agora você tomou a mente pelo conhecedor, mas não é precisamente assim. A mente o entope com imagens e ideias que deixam marcas na memória. Você toma o recordar pelo conhecimento. O verdadeiro conhecimento é sempre fresco, novo, inesperado. Ele jorra de dentro. Quando você sabe o que você é, você também é o que sabe. Não há lacuna entre o ser e o conhecer. 

P: Só posso investigar a mente com a mente. 

M: Claro que sim, use sua mente para conhecer sua mente. É perfeitamente legítimo e é também a melhor preparação para ir além da mente. Ser, conhecer e apreciar são seus. Primeiro compreenda seu próprio ser. Isto é fácil porque o sentido ‘eu sou' está sempre com você. Então, conheça-se como o conhecedor, separado do conhecido. Uma vez que se conheça como o puro ser, o êxtase da liberdade será seu.

P: Que Ioga é esta? 

M: Por que se preocupar? O que o faz vir aqui é o descontentamento com sua vida como a conhece, a vida de seu corpo e de sua mente. Você pode tentar melhorá-los através do controle e guiando-os para um ideal, ou você pode cortar totalmente o nó da autoidentificação, e olhar para seu corpo e sua mente como coisas que acontecem sem comprometê-lo de qualquer modo. 

P: Devo chamar o caminho do controle e da disciplina de raja yoga e o caminho do desapego de gnana yoga? E o culto de um ideal, de bhakti yoga? 

M: Se isso lhe agradar. As palavras indicam, mas não explicam. O que eu ensino é o caminho antigo e simples da libertação através do entendimento. Entenda sua própria mente, e a influência dela sobre você quebrará. A mente se equivoca, o equívoco é sua própria natureza. A compreensão correta é o único remédio, qualquer que seja o nome que você der a isto. É o primeiro e, também, o último, pois lida com a mente como ela é. Nada que fizer o mudará, porque você não precisa de nenhuma mudança. Você pode mudar sua mente ou seu corpo, mas sempre é algo externo a você o que mudou, não você. Por que se incomodar de qualquer forma em mudar? Compreenda de uma vez por todas que você não é nem seu corpo nem sua mente, nem mesmo sua consciência, e permaneça só em sua verdadeira natureza, além da consciência e da inconsciência. Nenhum esforço o pode levar ali, só a claridade do entendimento. Encontre seus mal-entendidos e abandone-os, isto é tudo. Nada há a buscar e encontrar, pois nada foi perdido. Relaxe e observe o ‘eu sou’. A realidade está exatamente por trás dele. Mantenha-se tranquilo, em silêncio; ela surgirá, ou melhor, levará você para dentro dela. 

P: Não devo, em primeiro lugar, libertar-me de minha mente e de meu corpo? M: Você não pode, pois a própria ideia o ata a eles. Apenas compreenda e desconsidere-os. 

P: Não sou capaz de desconsiderar, pois não estou integrado. 

M: Imagine que está completamente integrado, com seus pensamentos e ações totalmente coordenados. Como isto o ajudará? Isto não o libertará de tomar-se equivocadamente como o corpo ou a mente. Veja-os corretamente como ‘não você', isto é tudo. 

P: Você quer lembrar-me de esquecer! 

M: Sim. assim parece. Mesmo assim, não é algo desesperado. Você pode fazer isto. Apenas comece-o seriamente. Seu cego tatear é cheio de esperança. O próprio buscar é o descobrimento. Você não pode fracassar. 

P: Sofremos porque estamos desintegrados. 

M: Sofreremos enquanto nossas ações e pensamentos forem impulsionados pelos desejos e temores. Veja a futilidade deles, e o perigo e o caos que eles criam diminuirão. Não tente mudar a si mesmo, apenas veja a futilidade de toda mudança. O mutável continua mudando enquanto o imutável está esperando. Não espere que o mutável o leve ao imutável - isso não pode acontecer nunca. Apenas quando a ideia da mudança é vista como falsa e abandonada, é que o imutável pode vir por si mesmo. 

P: Aonde vou me dizem que devo mudar profundamente antes que eu possa ver o real. A este processo de mudança deliberada, autoimposto, denomina-se Ioga. 

M: Toda mudança só afeta a mente. Para ser o que você é, deve ir além da mente, para dentro de seu próprio ser. É insignificante a mente que você deixa para trás, desde que a deixe para sempre. Novamente, isto não é possível sem a autorrealização. 

P: O que vem primeiro - o abandono da mente ou a autorrealização? 

M: Definitivamente, a autorrealização vem em primeiro lugar. A mente não pode ir além de si mesma. Deve explodir. 

P: Não há exploração antes da explosão? 

M: O poder explosivo vem do real. Mas você está bem aconselhado a ter a mente pronta para ele. O temor sempre pode atrasá-lo, até que outra oportunidade apareça. 

P: Penso que sempre há uma oportunidade. 

M: Em teoria, sim. Na prática, a situação deverá surgir quando todos os fatores necessários para a autorrealização estiverem presentes. Isto não precisa desencorajá-lo. Sua insistência sobre a fato do ‘eu sou’ logo criará outra oportunidade; posto que a atitude atrai a oportunidade. Tudo o que você conhece é de segunda mão. Só o ‘eu sou’ é de primeira mão e não precisa de provas. Permaneça com ele.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sobre o Livro

BIOGRAFIA  Quando perguntavam sobre a data de seu nascimento, o Mestre replicava brandamente que ele nunca nasceu.  As poucas informações e...