78- TODO CONHECIMENTO É IGNORÂNCIA

 Pergunta: Permite-nos pedir-lhe que nos conte como aconteceu sua realização? 

Maharaj: De algum modo, foi muito simples e fácil em meu caso. Meu Guru, antes de morrer, falou-me: Acredite em mim, você é a Realidade Suprema. Não duvide de minhas palavras, não deixe de acreditar em mim, estou lhe dizendo a verdade - aja de acordo. Não pude esquecer suas palavras e, não as esquecendo - realizei-me. 

P: Mas o que fez real mente? 

M: Nada especial. Vivi minha vida, ocupei-me de meu comércio, cuidei de minha família, e passei cada momento livre lembrando de meu Guru e de suas palavras. Ele morreu pouco depois, e só tive a recordação para apoiar-me. Foi o suficiente. 

P: Deve ter sido a graça e o poder de seu Guru. M: Suas palavras eram verdadeiras, de modo que se realizaram. As palavras verdadeiras sempre se tornam realidade. Meu Guru não fez nada. Suas palavras atuaram porque eram verdadeiras. Tudo quanto fiz veio de dentro, sem pedir nem esperar. P: O Guru começou um processo sem tomar alguma parte nele? 

M: Coloque-o como gostar. As coisas acontecem como elas acontecem - quem pode dizer por que e como? Eu não fiz nada deliberadamente. Tudo veio por si mesmo - o desejo de abandonar, de estar só, de ir para dentro. 

P: Você não fez nenhum esforço? 

M: Nenhum. Acredite ou não, nem mesmo estava ansioso para entender. Ele só me disse que eu era o Supremo e então morreu. Simplesmente não poderia deixar de crer nele. O resto ocorreu por si mesmo. Percebi-me mudando - isto é tudo. De fato, eu estava atônito. Mas surgiu em mim o desejo de verificar suas palavras. Estava tão seguro de que ele não poderia ter dito uma mentira, que senti que devia entender todo o significado de suas palavras ou morrer. Senti-me bastante determinado, mas não sabia o que fazer. Passava horas pensando nele e em sua certeza, sem argumentar, simplesmente recordando o que ele havia me dito. 

P: O que aconteceu para você então? Como soube que você era o Supremo? 

M: Ninguém veio falar-me. Nem tampouco me foi dito internamente. De fato, foi só no princípio, quando estava fazendo esforços, que passei através de algumas experiências estranhas: via luzes, ouvia vozes, encontrava deuses e deusas e conversava com eles. Logo que o Guru me disse: ‘Você é a Realidade Suprema’, deixei de ter visões e transes e me tornei muito tranquilo e simples. Percebi-me desejando e conhecendo cada vez menos, até que pude dizer em total espanto: ‘Não sei nada, não quero nada’. 

P: Você estava genuinamente livre do desejo e do conhecimento ou personificou o gnani de acordo com a imagem dada a você pelo Guru? 

M: Não me deram uma imagem, nem tinha uma. Meu Guru nunca me disse o que esperar. 

P: Mais coisas podem acontecer para você. Você está no final de sua viagem? 

M: Nunca houve nenhuma viagem. Eu sou como sempre fui. 

P: Qual foi a Realidade Suprema que você entendeu encontrar? 

M: Fui desenganado, isso é tudo. Estava acostumado a criar um mundo e a povoá-lo. Agora já não o faço mais.

P: Onde você vive então? 

M: No vazio além do ser e do não ser, além da consciência. Este vazio também é plenitude; não tenha piedade de mim. É como um homem dizendo: Má fiz meu trabalho, não há nada mais a fazer’. 

P: Você dá uma certa data para sua realização. Significa que algo lhe aconteceu nessa data. O que aconteceu? 

M: A mente cessou de produzir eventos. A antiga e interminável busca parou - eu não queria nada, não esperava nada, não aceitava nada como próprio. Não havia nenhum ‘eu’ pelo qual lutar. Inclusive o despido ‘eu sou’ desapareceu. A outra coisa que notei foi que perdi todas as minhas certezas habituais. Antes eu estava seguro de muitas coisas, agora não estou seguro de nada. Mas, sinto que não perdi nada por não saber, porque todo o meu conhecimento era falso. Meu não saber era em si mesmo conhecimento do fato de que todo conhecimento é ignorância, de que ‘eu não sei’ é a única afirmação verdadeira que a mente pode fazer. Pegue a ideia 'eu nasci’. Você pode achar que ela é verdadeira, mas não é. Você não nasceu, nem jamais morrerá. É a ideia que nasceu e morrerá, não você. Por identificar a si mesmo com ela você se torna mortal. Do mesmo modo que no cinema tudo é luz, assim a consciência se converte no vasto mundo. Olhe mais de perto e verá que todos os nomes e todas as formas são apenas ondas transitórias no oceano da consciência, que só da consciência pode se afirmar que é, não de suas transformações. Na imensidão da consciência, aparece uma luz, um pontinho que se move rapidamente e traça formas, pensamentos e sentimentos, conceitos e ideias, como a caneta escrevendo sobre o papel. E a tinta que deixa uma marca é a memória. Você é este pontinho e, mediante seu movimento, o mundo é sempre recriado. Pare de mover-se, e não haverá mundo. Olhe dentro de si e encontrará que o ponto de luz é o reflexo da imensidade da luz no corpo como o sentido ‘eu sou’. Só há luz, tudo o mais aparece. 

P: Você conhece esta luz? Você a viu? 

M: Para a mente aparece como escuridão. Só pode ser conhecida através de seus reflexos. Tudo é visto à luz do dia - exceto a luz do dia. 

P: Devo entender que nossas mentes são similares? 

M: Como podem ser? Você tem sua própria mente privada, tecida com recordações unidas pelos desejos e temores. Eu não tenho mente própria; o que necessito conhecer, o universo o traz a mim, do mesmo modo que proporciona o alimento que eu como. 

P: Você conhece tudo o que quer conhecer? 

M: Não há nada que queira conhecer. Mas o que necessito conhecer, eu o conheço. 

P: Este conhecimento lhe chega de dentro ou de fora? 

M: Não é questão disso. Meu interior está fora e meu exterior está dentro. Posso obter de você o conhecimento necessário neste momento, mas você não está separado de mim. 

P: Que é turiya, o quarto estado de que ouvimos falar? 

M: Ser o ponto de luz que traça o mundo é turiya. Ser a própria luz é turiyatita. Mas para que servem os nomes quando a realidade está tão próxima? 

P: Há algum progresso em sua condição? Quando se compara a si mesmo ontem e hoje, vê-se mudando, progredindo? Sua visão da realidade cresce em amplitude e profundidade?

M: A realidade é estática e, ainda assim, está em constante movimento. É como um rio poderoso que flui e, não obstante, permanece eternamente. O que flui não é o rio com seu leito e margens, mas suas águas, assim o sattva guna, a harmonia universal, faz seu jogo contra tamas e rajas, as forças da escuridão e do desespero. Em sattva, sempre há mudança e progresso; em rajas, há mudança e regressão, enquanto tamas representa o caos. Os três gunas atuam eternamente uns contra os outros. Isto é um fato, e não pode haver discussão com fatos. 

P: Devo estar sempre embotado com tamas e desesperado com rajas? O que dizer de sattva? 

M: Sattva é o esplendor de sua natureza real. Sempre pode ser encontrado além da mente e de seus muitos mundos. Mas, se você quer um mundo, deve aceitar os três gunas como inseparáveis - matéria - energia - vida - um em essência, distintos em aparência. Eles se mesclam e fluem na consciência. No tempo e no espaço, há um fluxo eterno, nascimento e morte novamente, avanço, retirada, outro avanço, novamente retirada - aparentemente sem princípio nem fim; sendo a realidade atemporal, imutável, incorpórea, a Consciência sem pensamento é felicidade. 

P: Entendo que, segundo você, tudo é um estado de consciência. O mundo está cheio de coisas - um grão de areia é uma coisa, um planeta é uma coisa. Como estão relacionadas à consciência? 

M: Onde a consciência não alcança, começa a matéria. Uma coisa é uma forma de ser que não compreendemos. Não muda - sempre é a mesma - parece estar ali por si mesma - algo estranho e alienígena. Certamente, está na consciência (chit), mas parece estar fora devido à sua aparente imutabilidade. O fundamento das coisas está na memória - sem memória não haveria nenhum reconhecimento. Criação - reflexão - rejeição: - Brahma - Vishnu - Shiva, este é o processo eterno. Todas as coisas são governadas por ele. 

P: Não há escapatória? 

M: Não faço outra coisa senão mostrar-lhe a escapatória. Compreenda que o Um inclui os Três e que você é o Um, e você se libertará do processo do mundo. 

P: O que então acontece para minha consciência então? 

M: Depois da etapa de criação vem a etapa de exame e reflexão e, finalmente, a etapa de abandono e esquecimento. A consciência permanece, mas em um estado latente, em quietude. 

P: O estado de identidade permanece? 

M: O estado de identidade é inerente à realidade e nunca desaparece. Mas a identidade não é nem a personalidade transitória (vyakti), nem a identidade limitada pelo carma (vyakta). É o que resta quando toda autoidentificação é abandonada como falsa - pura consciência, o sentido de ser tudo o que existe ou possa ser. A consciência é pura no princípio e pura no final; no intervalo, ela se contamina pela imaginação que está na raiz da criação. Em todo o tempo, a consciência permanece a mesma; conhecê-la como ela é, é realização e paz eterna. 

P: O sentido ‘eu sou’ é real ou irreal? 

M: Ambos. É irreal quando dizemos: ‘Eu sou isto, eu sou aquilo’. É real quando queremos dizer: ‘Eu não sou isto nem aquilo’. O conhecedor vem e vai com o conhecido, e é transitório; mas isso que sabe que não conhece, que está livre da memória e da antecipação, é atemporal. 

P: O ‘eu sou’ é a testemunha, ou estão separados? 

M: Sem um. o outro não pode existir. Ainda assim eles não são um. É como a flor e sua cor. Sem flor, não há cor; sem cor, a flor fica invisível. Mais além está a luz que, em contato com a flor, cria a cor. Compreenda que sua verdadeira natureza é apenas esta de luz pura, e que ambos, o que percebe e o percebido, vêm e vão juntos. Isso que faz ambos possíveis, e que ainda assim não é nenhum deles, é seu ser real, o que significa que não é um ‘isto' ou ‘aquilo', mas pura Consciência de ser e não ser. Quando a Consciência se volta sobre si mesma, o sentimento é de não conhecer. Quando se volta para fora, o que pode ser conhecido vem a ser. Dizer ‘Eu me conheço' é uma contradição em termos, porque o que é ‘conhecido' não pode ser ‘eu mesmo’. 

P: Se o eu é para sempre o desconhecido, o que se compreenderá então na auto realização? 

M: Saber que o conhecido não pode ser eu nem meu já é suficiente liberação. A liberação da auto identificação com um conjunto de memórias e hábitos, o estado de admiração ante as riquezas infinitas do ser, sua criatividade inexaurível e total transcendência, a absoluta valentia que nasce da percepção do ilusório e da transitoriedade de cada modo de consciência - fluem de uma fonte profunda e inesgotável. Conhecer a fonte como fonte, o aparente como aparente, e a si mesmo como apenas a fonte, é a auto realização. 

P: Em que lado está a testemunha? É real ou irreal? 

M: Ninguém pode dizer: ‘Eu sou a testemunha'. O ‘eu sou’ é sempre testemunhado. O estado de Consciência desapegada é a consciência-testemunha, a ‘mente-espelho’. Por surgir e desaparecer com seu objeto ela não é plenamente real. Apesar disso, ela permanece sempre igual e, portanto, é também real. Ela compartilha de ambos, do real e do irreal e, por isso, é uma ponte entre os dois. 

P: Se tudo acontece apenas ao ‘eu sou’, se o ‘eu sou’ é o conhecido, o conhecedor e o próprio conhecimento, o que faz a testemunha? Para que serve? 

M: Não faz nada e não serve para nada. 

P: Então, por que falamos dela? 

 M: Porque está aí. A ponte só serve a um propósito - atravessar. Você não constrói casas na ponte. O ‘eu sou' olha as coisas, a testemunha vê através delas. Ela as vê tal como elas são - irreais e transitórias. Dizer ‘não eu. não meu' é a tarefa da testemunha. 

P: O manifestado (saguna) é a representação do não manifestado (nirguna)? 

M: O não manifestado não está representado. Nada manifestado pode representar o não manifestado. 

P: Por que você fala dele então? 

M: Porque é minha pátria.

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Sobre o Livro

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