Pergunta: Estamos em guerra (o conflito entre índia e Pakistan deflagrado naquele ano). Qual sua atitude frente a ela?
Maharaj: Em algum lugar ou outro, de uma forma ou de outra, sempre há guerra. Será que já houve uma época sem guerras? Alguns dizem que é vontade de Deus. Outros dizem que é o jogo de Deus. É outra maneira de dizer que as guerras são inevitáveis e que ninguém é responsável.
P: Mas qual é sua atitude em relação a ela??
M: Por que me impõe atitudes? Não tenho nenhuma atitude que eu possa chamar de minha.
P: Certamente, alguém é responsável por esta horrível carnificina sem sentido. Por que as pessoas estão sempre prontas a matar umas às outras?
M: Busque o culpado dentro de você. As ideias de ‘eu’ e ‘meu’ estão na raiz de todo conflito. Liberte-se delas e você estará fora do conflito.
P: Que importância tem o fato que eu esteja fora do conflito? Isso não afetará a guerra. Se eu sou a causa da guerra, estou pronto para ser destruído. Contudo, é evidente que o desaparecimento de milhares de homens como eu não deterá as guerras. Elas não começaram com meu nascimento nem acabarão com a minha morte. Eu não sou responsável. Quem é?
M: A disputa e a luta são uma parte da existência. Por que não investiga quem é responsável pela existência?
P: Por que você diz que a existência e o conflito são inseparáveis? Não pode haver existência sem conflito? Não preciso lutar contra os outros para ser eu mesmo.
M: Você luta contra os outros o tempo todo por sua sobrevivência como um corpo/mente separado, um nome e uma forma particulares.
Para viver, você deve destruir. Desde o momento em que você foi concebido, você começou uma guerra contra tudo que o cerca - uma guerra cruel de mútuo extermínio, até que a morte o liberte.
P: Minha pergunta permanece sem resposta. Você meramente descreve o que eu conheço - a vida e suas aflições. Mas, quem é o responsável, você não diz. Quando o pressiono, lança a culpa em Deus, no karma, na minha própria avidez e medo, o que só leva a mais perguntas. Dê-me a resposta final.
M: A resposta final é esta: nada é. Tudo é uma aparição momentânea no campo da consciência universal; a continuidade como nome e forma é apenas uma elaboração mental, fácil de dissipar.
P: Eu estou perguntando sobre o imediato, o transitório, a aparência. Há aqui uma foto de uma criança assassinada pelos soldados. É um fato - encarando você. Não pode negá-lo. Agora, quem é o responsável pela morte da criança?
M: Ninguém e cada um de nós. O mundo é o que ele contém, e cada coisa afeta todas as demais. Todos nós assassinamos a criança e todos morremos com ela. Cada evento tem inumeráveis causas e produz um sem número de efeitos. É inútil manter contas, nada é rastreável.
P: Seu povo fala de karma e de retribuição.
M: É só uma aproximação grosseira: na realidade, todos somos criadores e criaturas uns dos outros, causando e tolerando a carga uns dos outros.
P: Portanto, o inocente sofre pelo culpado?
M: Em nossa ignorância, somos inocentes; em nossas ações, somos culpados. Pecamos sem saber, e sofremos sem compreender. Nossa única esperança é parar, olhar, compreender e sair das armadilhas da memória. Porque a memória alimenta a imaginação, e a imaginação gera desejo e medo.
P: Por que imagino?
M: A luz da consciência atravessa o filme da memória e projeta as imagens no seu cérebro. Por causa do estado defeituoso e confuso desse último, o que você percebe está deformado e tingido por sentimentos de atração e repulsa. Ponha ordem em seu pensamento e liberte-o dos aspectos emocionais, e verá as pessoas e as coisas como são, com clareza e compaixão. A testemunha do nascimento, da vida e da morte, é única e a mesma. Ela é a testemunha do sofrimento e do amor. Porque, embora a existência na limitação e na separação seja triste, nós a amamos. Nós a amamos e a odiamos ao mesmo tempo. Lutamos, matamos, destruímos a vida e a propriedade e. ainda assim, somos carinhosos e nos sacrificamos. Cuidamos com ternura da criança e também a tomamos órfã. Nossa vida é cheia de contradições, mas nos apegamos a ela. Este apego está na raiz de tudo. Não obstante, é inteiramente superficial. Agarramo-nos a algo ou a alguém com todas as nossas forças e, no momento seguinte, o esquecemos; como uma criança que molda suas formas de barro e as abandona alegremente. Toque nelas e ela gritará com raiva, distraia a criança e ela as esquecerá. Porque nossa vida é agora, e nosso amor por ela é agora. Amamos a variedade, o jogo de dor e prazer; estamos fascinados pelos contrastes. Para isto necessitamos dos pares de opostos e sua aparente separação. Nós os apreciamos por um tempo e logo nos cansamos e desejamos a paz e o silêncio do puro ser. O coração cósmico bate sem parar. Eu sou a testemunha e sou também o coração.
P: Posso ver o quadro, mas quem é o pintor? Quem é responsável por esta terrível e, ainda assim, adorável experiência?
M: O pintor está no quadro. Você separa o pintor do quadro e o busca. Não separe e não crie falsos problemas. As coisas são como são e ninguém em particular é responsável. A ideia da responsabilidade pessoal vem da ilusão de que há um agente. ‘Alguém deve ter feito isto, alguém é responsável’. A sociedade tal como é agora, com sua estrutura de leis e costumes, está baseada na ideia de uma personalidade separada e responsável, mas esta não é a única forma que a sociedade pode tomar. Pode haver outras formas, onde o sentido de separação seja débil e a responsabilidade difusa.
P: Um indivíduo com um sentido débil de personalidade está mais próximo da autorrealização?
M: Tome o caso de uma criança pequena. O sentido do ‘eu sou’ ainda não está formado, a personalidade é rudimentar. Os obstáculos para o autoconhecimento são poucos, mas falta o poder e a clareza da Consciência. sua profundidade e amplitude. No curso dos anos, a Consciência se fortalecerá, mas também surgirá a personalidade latente que obscurecerá e complicará. Como quanto mais dura for a madeira mais quente será a chama, assim também, quanto mais forte for a personalidade, mais brilhante será a luz gerada pela sua destruição.
P: Você não tem problemas?
M: Eu tenho problemas. Já lhe disse. Ser, existir com um nome e uma forma é doloroso. Ainda assim amo isto.
P: Mas você ama tudo!
M: Tudo está contido na existência. Minha própria natureza é amar; até o que é doloroso é amável.
P: O que não o faz menos doloroso. Por que não permanecer no ilimitado?
M: O que me traz à existência é o instinto de exploração, o amor pelo desconhecido. Está na natureza do Ser buscar a aventura no devir, assim como está na natureza do devir buscar a paz no Ser. Essa alternância entre o Ser e o tornar-se é inevitável; mas meu lar está além.
P: Seu lar está em Deus?
M: Amar e adorar um deus também é ignorância. Meu lar está além de todos os conceitos, por mais sublimes que sejam.
P: Mas Deus não é uma noção! É a realidade além da existência.
M: Você pode usar qualquer palavra que gostar. Seja o que for que você possa pensar, eu estou além.
P: Uma vez que conheça seu lar, por que não permanecer nele? O que o retira dele?
M: Devido ao amor pela existência corporal, alguém nasce e, uma vez nascido, fica envolvido no destino. O destino é inseparável do devir. O desejo de ser o particular o converte em uma pessoa com todo seu passado e futuro pessoal. Olhe para algum grande homem, para quão maravilhoso foi! Mesmo assim, como foi perturbada sua vida e quão limitados os seus frutos. Quão totalmente dependente é a personalidade do homem e quão indiferente é seu mundo. E, não obstante, nós o amamos e o protegemos por sua própria insignificância.
P: A guerra e o caos estão em marcha e lhe pedem que se ocupe de um centro de alimentação. O necessário lhe é dado, é só uma questão de fazer o trabalho. Você o recusaria?
M: Trabalhar ou não trabalhar é a mesma coisa para mim. Posso encarregar-me, ou não. Pode haver outros mais bem capacitados que eu para tais tarefas - os provedores profissionais, por exemplo. Mas minha atitude é diferente. Eu não vejo a morte como uma calamidade, do mesmo modo que não me alegro pelo nascimento de uma criança. A criança está pronta para os problemas enquanto o morto está fora deles. O apego à vida é apego à aflição. Amamos o que nos dá dor. Tal é nossa natureza. Para mim. o momento da morte será um momento de júbilo, não de temor. Chorei quando nasci, e morrerei rindo.
P: Que tipo de transformação ocorre consciência no momento da morte?
M: Que transformação você espera? Quando a projeção do filme acaba, tudo fica igual a quando começou. O estado anterior ao seu nascimento era também o estado depois da morte, se você lembrar.
P: Eu não lembro nada.
M: Porque você nunca tentou. É apenas questão de sintonia na mente. Certamente, requer treinamento.
P: Por que você não participa do trabalho social?
M: Mas se não faço outra coisa o tempo todo! E que trabalho social você quer que eu faça? Remendar não é para mim. Minha posição é clara: produzir para distribuir, alimentar antes de comer, dar antes de tomar, pensar nos demais antes de pensar em si mesmo. Só uma sociedade altruísta, baseada no compartilhar, pode ser estável e feliz. Esta é a única solução prática. Se você não a quiser - lute.
P: É tudo questão de gunas. Onde predominam tamas e rajas, deve haver guerra. Onde governa sattva, haverá paz.
M: Coloque isto do modo que você quiser, vem a ser o mesmo. A sociedade está construída sobre motivações. Ponha boa vontade nos fundamentos e não necessitará trabalhadores sociais especializados.
P: O mundo está melhorando.
M: O mundo teve todo o tempo para melhorar, mas não o fez. Que esperança há para o futuro? Certamente, tem havido e haverá períodos de harmonia e paz. quando sattva estiver em ascensão, mas as coisas são destruídas pela sua própria perfeição. Uma sociedade perfeita necessariamente é estática e, portanto, estagna e decai. Do cume, todos os caminhos vão para baixo. As sociedades são como as pessoas - nascem, crescem até um ponto de relativa perfeição, e então decaem e morrem.
P: Não há um estado de perfeição absoluta que não decaia?
M: Aquilo que tem um princípio deve ter um fim. No atemporal tudo é perfeito, aqui e agora.
P: Mas alcançaremos o atemporal no tempo devido?
M: No devido tempo, voltaremos para o ponto de partida. O tempo não nos pode levar para fora do tempo, da mesma forma que o espaço não pode nos levar para fora do espaço. Tudo o que se ganha esperando é mais espera. A perfeição absoluta está aqui e agora, não no futuro, próximo ou distante. O segredo está na ação - aqui e agora. É seu comportamento que o cega a si mesmo. Desconsidere qualquer coisa que você acredite ser e atue como se você fosse absolutamente perfeito - qualquer que seja sua ideia de perfeição. Tudo o que você necessita é coragem.
P: Onde encontro tal coragem?
M: Em você mesmo, naturalmente. Olhe em seu interior.
P: A sua graça ajudará.
M: Minha graça está dizendo a você agora: olhe para dentro. Tudo o que você necessita você tem. Use-o. Comporte-se da melhor forma que você conhecer, faça o que pensa que deve fazer. Não tema os erros; sempre pode corrigi-los; apenas as intenções interessam. As formas que as coisas tomam não estão em seu poder; os motivos de suas ações estão.
P: Como pode a ação nascida da imperfeição levar à perfeição?
M: A ação não leva à perfeição; a perfeição se expressa na ação. Enquanto você julga a si mesmo por suas expressões, dê a elas a maior atenção; quando você entender seu próprio ser, seu comportamento será perfeito - espontaneamente.
P: Se eu fosse eternamente perfeito, então por que nasceria? Qual o propósito desta vida?
M: Seria como perguntar: em que se beneficia o ouro ao converter-se em uma joia? A joia toma a cor e a beleza do ouro; o ouro não se enriquece. Similarmente, a realidade expressada na ação faz a ação bela e significativa.
P: O que o real ganha através de suas expressões?
M: O que poderia ganhar? Absolutamente nada. Mas está na natureza do amor o expressar-se a si mesmo, o afirmar-se, o vencer dificuldades. Uma vez que haja entendido que o mundo é o amor em ação, você o olhará de forma muito diferente. Mas, primeiro, deve mudar sua atitude em relação ao sofrimento. O sofrimento é, primariamente, uma chamada de atenção, o que em si mesmo é um movimento de amor. Mais que felicidade, o amor quer crescimento, a ampliação e o aprofundamento da consciência e do ser. Qualquer coisa que o impeça se converte em causa de dor e o amor não a evita. Sattva, a energia que trabalha pela retidão e pelo desenvolvimento ordenado, não deve ser frustrada. Quando obstruída, volta-se contra si mesma e se torna destrutiva. Quando o amor é contido e se permite a expansão do sofrimento, a guerra se torna inevitável. Nossa indiferença à aflição de nosso vizinho traz o sofrimento para nossa porta.
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